sexta-feira, 22 de junho de 2012

UMA REFLEXÃO IMPORTANTE(III)

Para que não se percam os frutos da civilização (Final)
 Manuel Raposo [*]
VII Último argumento.

Arrisco afirmar que a ideia axial que percorre a obra de Karl Marx é a de que o capitalismo é perecível, não é eterno – que é uma formação social com um papel histórico limitado e portanto também com um tempo de vida determinado. O papel histórico é socializar o trabalho, libertar os produtores da propriedade – enfim, "fazer crescer sem freio e em progressão geométrica a produtividade do trabalho humano".

É fácil ver na evolução do último século a larguíssima socialização do trabalho, a extensíssima abolição da propriedade individual em todo o globo e o aumento colossal da produtividade do trabalho. Isso, sem dúvida, aproximou a humanidade do socialismo, colocando-nos hoje muito adiante daquilo que era o mundo, por exemplo, em 1917.

O que já não é tão fácil é prever o tempo de vida do capitalismo, porque isso não depende apenas do descalabro do sistema; depende decisivamente, das forças sociais que se decidam a pôr-lhe termo.

Mas o desenrolar da crise tem o condão de ajudar a rasgar os véus com que a sociedade burguesa se recobre e de pôr à vista a natureza da sua dominação classista.

O que é que a crise põe à vista?

Põe à vista o Estado, não como árbitro dos conflitos sociais, ou como expressão de um suposto interesse colectivo, nacional – mas como instrumento de uma classe;

Mostra a democracia, na realidade, como uma plutocracia de que as massas populares estão inteiramente arredadas; como uma ditadura da burguesia que assume feições cada vez mais totalitárias;

Mostra a classe capitalista, toda ela, com um único plano para aliviar a crise – que consiste em explorar mais eficazmente as classes trabalhadoras;

Mostra que a condição de uma eventual recuperação económica é a destruição de meios de produção, seja pela gradual desvalorização do capital, seja pela violência da guerra;

Mostra em plena acção a lei geral da acumulação capitalista, visível na criação de uma massa crescente de desempregados e de marginalizados e no aumento da pobreza;

Mostra que o tempo ganho pela sociedade graças ao aumento da produtividade não se traduz em menos tempo de trabalho obrigatório, mas sim na irracionalidade de mais desemprego e maior grau de extorsão dos trabalhadores em actividade;

Mostra ainda a acção concertada das burguesias por cima dos limites nacionais, mostra a semelhança dos problemas sofridos pelas massas trabalhadoras dos diferentes países – e mostra portanto a falta que faz, da banda dos proletários, um internacionalismo que vá para lá da mera solidariedade moral e se traduza numa efectiva coordenação prática das acções de resistência.

O esclarecimento e a mobilização das massas proletárias não podem passar ao lado destes factos. Eles são os elementos educativos por excelência que a realidade prática nos fornece para mostrar o limite a que chegou este sistema social e o absurdo que é prolongar o seu tempo de vida.

De resto, se bem percebo o sentimento que os trabalhadores têm a respeito do mundo em que vivem, não é a confiança no capitalismo que os leva a aceitá-lo – é antes a noção resignada de que não há alternativa viável que o substitua, e sobretudo de que não há força que o possa deitar abaixo.

Ora, na linha do marxismo revolucionário, a tarefa não é reabilitar ou remendar o capitalismo, mas desacreditá-lo aos olhos do proletariado.

Atacar as bases do mundo capitalista não é, sobretudo nas circunstâncias actuais, uma ideia desgarrada da realidade quotidiana. Ao contrário, é a condição de estimular e reunir as forças de classe dos trabalhadores e de os levar a encarar a necessidade de construir um mundo conduzido por regras opostas às do mundo capitalista.

Que o burguês não veja a crise para além do défice, da dívida, da quebra do lucro, da falta de crédito e dos remédios correspondentes para esse tipo de males – está certo. Mas que os proletários vejam as coisas pelo mesmo prisma – está errado.

O proletariado já teve de fazer muitos sacrifícios por causas alheias. Chegou a altura de afirmar a sua própria causa.

Propor ao proletariado a saída do círculo de giz do capitalismo – é esse, a meu ver, o papel do comunismo marxista.
Notas
(1) Carta de Karl Marx a Pavel V. Annenkov, Marx-Engels Obras Escolhidas, Tomo I, p. 546. Edições "Avante!", Lisboa – Edições Progresso, Moscovo, 1982.
(2) Idem, p. 553.
(3) Karl Marx, Miséria da Filosofia . Prefácio de F. Engels à 1.ª edição alemã, p. 20. Edições "Avante!". Lisboa, 1991.
(4) Karl Marx, O Capital, Livro III, p. 1772. Éditions Gallimard, 1963 e 1968.
(5) Claude Bitot, Inquérito ao capitalismo dito triunfante . Edições Dinossauro, Lisboa, 1996.
(6) Tom Thomas, A crise crónica ou o estádio senil do capitalismo. Edições Dinossauro, Lisboa, 2007.
Marx admite uma situação de sobreprodução absoluta de capital nestes termos: "uma sobreprodução que afectaria não este ou aquele domínio ou alguns domínios importantes da produção, mas seria absoluta pela sua própria amplitude e englobaria portanto todos os domínios da produção". Karl Marx, O Capital, Livro III, p. 1595. Éditions Gallimard, 1963 e 1968.
(7) Andrew Kliman, The failure of capitalist production, Pluto Press, London, 2012.
(8) Karl Marx, O Capital , Livro III, tomo I, p. 274. Éditions Sociales, Paris, 1969. (Passagem redigida por Engels sobre notas de Marx).
(9) Em 1970, na média dos seis maiores da OCDE (França, Itália, Grã-Bretanha, RFA, EUA e Japão), representava quase 40% da população activa total. C. Bitot, o. c.
(10) No conjunto dos 25 países da OCDE o desemprego foi de uns 11 milhões entre 1950 e 1974, e de 1974 até final do século saltou para 35 milhões, acompanhando o enorme incremento do capital fixo. C. Bitot, o. c.
(11) O valor do capital fixo investido por posto de trabalho, em França, era em 1950 inferior a 100 mil francos; em 1990, era superior a 1 milhão de francos, isto é, 10,4 vezes mais. Em comparação, de 1890 a 1950 a diferença não passou de 3,7 vezes mais. C. Bitot, o.c.
(12) O emprego no terciário em França, Itália, Grã-Bretanha, RFA, EUA e Japão representava, na média dos seis países, as seguintes percentagens da população activa: em 1960, 43,9%; em 1970, 49,2%; em 1990, 65,5%. C. Bitot, o.c. Em Portugal, o terciário representava 27,5% em 1960 e 51,3% em 1991. Elísio Estanque, A classe média: ascensão e declínio. FFMS, Lisboa, 2012.


[*] Intervenção no
Congresso Marx em Maio – Perspectivas para o século XXI, 3-5/Maio/2012, Faculdade de Letras, Lisboa.

Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/

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