quarta-feira, 27 de agosto de 2014

TRANSGENICOS PARA QUEM? (2)

1 TRANSGÊNICOS, PODERES, CIÊNCIA,CIDADANIA1




Gilles-Eric Séralini
Os poderes técnicos, científicos, médicos, sociais, jurídicos, ilitares, econômicos e políticos são todos, em um momento u outro, inclinados para que a genética os utilize a seu modo.
Atualmente, focalizam-se diretamente sobre os genes. O balanço rovisório é inquietante.
Os poderes técnicos criam genes artificiais na integralidade a partir de construções quiméricas que permitem transpor as barreiras das espécies. As mesmas técnicas permitem ainda clonar
ou detectar um traço ínfimo de gene sobre uma maçaneta de porta ou em um alimento.
Os poderes científicos asseguram o domínio da biologia molecular sobre os diferentes aspectos das ciências da vida. Ela é mais ávida de créditos e de cargos que as outras especialidades e
pode até mesmo influenciar comitês de ética. Orienta as pesquisas, os desenvolvimentos práticos ou industriais. Aliada à informática, a biologia dominará a vida do cidadão do século 21.
Os poderes médicos favorecem as grandes arrecadações de fundos públicos para a genética, sem que isso possa trazer, desde muitos anos, resultados à altura das promessas, como a terapia
gênica, por exemplo. Os poderes sociais, as seguradoras, os empregadores e os banqueiros se apropriam da genética para fins duvidosos.
Os poderes jurídicos, como a Corte Suprema nos Estados Unidos ou a Corte da Justiça Europeia, decidiram aceitar as

1 Traduzido do livro Génétiquement incorrecte [Geneticamente incorreto], de Gilles-Éric Séralini,


Capítulo Conclusão (Paris: Flammarion, 2003).




patentes sobre os genes, e obviamente sobre os organismos vivos, o que é uma revolução incomensurável, e, além disso, são esses poderes jurídicos que autorizam ou não, no final, em caso de
conflito, os Estados a plantarem os OGMs. Apelam por vezes a toda onipotência dos testes genéticos para tomarem suas decisões.
Os poderes militares apontam suas armas e defesas utilizando os genes, menos caros, mais fáceis de serem manipulados do que as armas nucleares e capazes de se reproduzir. Da luta contra o
bioterrorismo ao controle agrícola ou genético, há apenas um passo. A caixa de Pandora das armas biológicas está aberta. Os poderes econômicos vibram de prazer: o ser vivo será patenteado graças aos genes dos quais se tornarão proprietários privados; seus bens se estendem à agricultura, à aquicultura, aos animais de criação e, certamente, à farmácia. As empresas, pela primeira vez, tornam-se donas de direitos de reprodução de organismos vivos. Sem contar que oferecem as modificações genéticas e a clonagem a la carte.



Os poderes políticos subservientes aos interesses econômicos ditam regulamentações que apresentam atraso em relação aos avanços das técnicas; eles autorizam a disseminação dos OGMs
no meio ambiente, a clonagem das células embrionárias e são, sobretudo, responsáveis pelo maior ou menor rigor nos controles. Estão esses poderes sendo inocentemente aconselhados pelos
poderes científicos, cujos interesses econômicos cruzam com as biotecnologias? Os políticos de todas as partes vêm estimulando há tempos esse casamento ilegítimo.
Ciência reducionista ou integrativa?


Mas qual concepção da ciência anima esses conselheiros dos príncipes? A que integra a fisiologia dos organismos inteiros, a toxicologia em longo prazo, o meio ambiente, as propriedades
complexas dos genes? Em resumo, a ecogenética? Ou uma ciência de bolso, reduzida à técnica, que propõe uma concepção da genética preparada em kit, aquela que veiculam sobretudo as páginas em papel glacé das revistas de grandes firmas, os lobbies nos parlamentos e os colóquios fechados?


O conjunto representa supostamente a ciência oficial, em relação aos que são frequentemente considerados como apenas vulgares m´dias exageradas, ou pior, perante um cidadão que se supõe irracional - aquele que apreende, portanto, com bastante bom-senso a imensidão das interações nas redes do reino vivo.
Os slogans são repetidos pelos economistas e associados:
“Um gene, uma proteína, uma função”; “Com os OGMs, fazemos irurgia molecular com muita precisão; ou, ainda, o que a natureza

sempre realizou”; “Escolha, em suma, o que lhe dá mais segurança”,

subentende a publicidade científica; “Tudo para proteger o meio

ambiente, certamente”; “Os OGMs não têm nenhum impacto

negativo sobre a saúde, aliás, não mataram ninguém nos Estados


 










Unidos”; “E alimentarão os mais pobres”; “A clonagem dará
possibilidade de se reproduzir aos casais que não o puderam fazer”.
E poderíamos continuar com a lista por um longo tempo. O
que é mais grave: todas essas afirmações ou são reducionistas, ou
são falsas, ou representam apenas um aspecto muito reduzido do
conhecimento. No que se refere aos genes, estes se multiplicam
de célula em célula, de pai para descendente, ou por vezes por
meio de transferências muito particulares. Eles se espalham,
pulam nas células e, conforme as condições do meio ambiente,
por vezes se modificam. Envelhecem, se poluem, trabalham em
rede, têm interações positivas ou negativas e, sobretudo, de forma

diferente segundo seus contextos. Nascem, morrem2 extinguemse
lentamente3 ou se suicidam4. Têm efeitos completamente

inesperados, cujas regras nos escapam. Existe uma verdadeira
ecologia dos genes que ainda conhecemos bastante mal.
2 Estes dois fenômenos, quando da transposição, por exemplo (ativações, mutações).
3 Por metilações, é um dos casos.
4 DNA degrada-se ativamente no transcorrer do apoptose, morte celular programada.




Não compreendemos as sutilezas genéticas das espécies
vivas que modificamos ou clonamos. Aliás, não conhecemos,
afinal, tanto assim. Não sabemos, por exemplo, por que, nas mãos
dos cientistas, essas técnicas não funcionam na maior parte dos
casos, ou apresentam resultados bizarros. Fica claro que nossos
dados sobre os genomas, ainda que bem parciais, correspondem

somente à ínfima ponta emersa do iceberg. Ora, alguns declaram

conhecer todo o genoma humano, para fazer com que as ações
subam na Bolsa, desorientando até mesmo outros cientistas que
neles acreditam momentaneamente. É uma ciência reducionista,
e não integrativa, com muito pouco espírito de síntese, que
é destinada aos tomadores de decisão. O desequilíbrio entre as
ciências no poder também contribui para essa abordagem, mas
outros parâmetros entram no jogo.
Observa-se frequentemente uma defasagem assustadora
entre a realidade do saber (nossas noções ficam bem frágeis
diante da complexidade surpreendente da vida) e o que por
vezes é afirmado publicamente por certos grupos científicos ou
econômicos, e retomado pelos políticos com a única finalidade de
explorar a credulidade e a generosidade da população, agitando
os chocalhos milagrosos. Evoquemos, por exemplo, as promessas
da luta contra a seca graças aos transgênicos; ou o anúncio da
descoberta de genes de doenças raras; e, ainda, os falsos avanços
sobre as clonagens humanas. Para que servem essas quase mentiras?
Para evitar os regulamentos ou os controles aprofundados? Para
apoiar a ausência de rotulagem? Para os lucros comerciais de
determinado poder econômico? Para a recuperação de doações
generosas das grandes arrecadações públicas? A menos que certo
poder procure assentar sua autoridade sobre o genético-total,
nada está claro. Mas alguns se aproveitam da opacidade e da falta
de transparência nas verdadeiras realizações e em sua avaliação.





A ciência serve à técnica e à economia antes de servir
ao cidadão


“Todas as liberdades públicas são limitadas por outras
liberdades públicas, inclusive a liberdade de expressão. Mas não

a liberdade da pesquisa”5, surpreende-se a jurista especialista em

domínio de biotecnologia, Marie-Angèle Hermitte. A pesquisa
fundamental é como a arte, uma criação magnífica, e sua morte
seria a morte do homem. Mas é preciso ainda saber impor um
prazo entre as descobertas e suas aplicações práticas, a fim de se
avaliar sem restrição os verdadeiros progressos e os riscos. Será
preciso talvez inventar espaços de liberdade pública que permitam
que as aplicações da pesquisa em biologia não sejam sempre
decididas sem a consulta ao cidadão. Deve-se impor os OGMs
como divindades celestiais se ninguém os quer? Mas a informação
é severamente controlada pelas agências de comunicação das
empresas, ou pelo sistema da “ciência em festa” – uma vez que
esta agora se habituou a celebrar a si mesma. Conheço os que
recusam o selo de qualidade dessas manifestações que parecem,
portanto, abertas. Têm por vezes mais publicações ou referências
bibliográficas que outros, mas não correspondem tão bem ao
discurso oficial do desenvolvimento econômico e do “Tudo está
sob controle”, aí incluída também a ética.
Será necessário realizar plebiscitos, como o Criigen (Comité
de Recherche et d’Information Indépendantes sur le Génie
Génétique) os reclama, sobre as decisões que mudam o mundo,
como as autorizações de plantio em grande escala dos OGMs ou
como a clonagem? Tornemos os pesquisadores independentes dos
fundos privados, auxiliando-os ainda mais, caso os julguemos
úteis, e organizemos a contraperitagem urgente dos dossiês
que modificarão a alimentação, a saúde, o meio ambiente e a
reprodução humana. Nada será realizado sozinho.
5 HERMITTE, M.-A. Libération, 23-24 mar. 2002. M.-A. Hermitte é diretora de pesquisa no CNRS
e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais.




Porque, efetivamente, no presente, a ciência serve muito
mais e objetivamente à técnica e à economia do que à sociedade;
ora, a técnica e a economia podem se desconectar dos interesses
societais em curto, médio e longo prazo, como atestam exemplos

múltiplos6, simplesmente para os benefícios de algumas empresas.

Não existe sindicalismo da informação científica e isso é
lamentável.
Como será o futuro?


“A longo prazo, na realidade, a inteligência artificial e a
engenharia genética representam um perigo para a supremacia
do espírito humano”, assegura F. Dyson, laureado com o prêmio

Templeton em 20007. Se isso for verdade, a vontade democrática

será então, infelizmente, a primeira a ser imolada no altar do
sacrifício organizado pelos diferentes poderes, pois será um
obstáculo. Já hoje, diversos tomadores de decisões querem impor
os transgênicos, custe o que custar, acreditando em promessas não
verificáveis. A clonagem para fins terapêuticos é um fato já aceito.
As patentes sobre o ser vivo não serão mais verdadeiramente
discutidas. E tudo isso pelos belos olhos da genética, ou da ciência?
Certos políticos e industriais raciocinam, de acordo com o princípio
da bola de neve: se os americanos o fizeram, será impensável não
correr atrás deles.
À pergunta: “É necessário ter medo da ciência?”, Corinne
Lepage, que trabalha tanto para que a aplicação do princípio
da precaução seja um princípio de ação e escolha, responde: “A

6 Cf., por ordem alfabética e notadamente: BOVÉ, J.; DUFOUR, F. Le monde n’est pas une
marchandise: des paysans contre la malbouffe. Paris: La Découverte, 2001; DI COSMO, R.; NORA,
D. Le hold-up planétaire. Paris: Calmann-Lévy, 1998; FORRESTER, V. L’horreur économique. Paris:
Fayard, 1996; Idem. Une étrange dictature. Paris: Fayard, 2000; GEORGE, S. Le rapport lugano. Paris:
Fayard, 2000; LEPAGE, C. On ne peut rien faire, Madame le ministre... Paris: Albin Michel, 1998;
LUNEAU, G. Les nouveaux paysans. Paris: Éd. du Rocher, 1997; PASSER, R. Éloge du mondialisme
par un “anti”-présumé. Paris: Fayard, 2001; SAINT-MARC, P. L’économie barbare. Paris: Frison-
Roche, 1994; SHIVA, V. Le terrorisme alimentaire. Paris: Fayard, 2001.
7 DYSON, F. Le soleil, le génome et Internet. Paris: Flammarion, 2001, p. 119.



ciência retornará à conquista por essência do espírito humano
quando tiver aceitado substituir o progresso tecnológico pelo

progresso humano”8. Porque a precaução é o verdadeiro motor do

progresso. Não se trata de parar tudo, mas de se assegurar uma
progressão inteligente. O princípio da precaução permite repensar
a economia, o crescimento e o comércio em função dos interesses
superiores da saúde e do meio ambiente.
Portanto, a ciência estava destinada quase que de forma
natural a esses belos avanços, essas sínteses, essas precauções, por
sua natureza e pelos conhecimentos multifatoriais e apaixonantes
que ela desperta sobre a complexidade da vida, sempre inspirando
o respeito ao maravilhoso. Reduzimo-la, sequestramo-la,
confinamo-la em vista de aplicações desorganizadas e não
controladas, para maiores benefícios de alguns – com o risco de
se colocarem como reféns a saúde humana, os equilíbrios sociais,
o planeta e seu futuro. É tempo de se criar a ecogenética e de
deixar a ciência respirar, a fim de se estimularem os estudos a
respeito dos efeitos do meio ambiente sobre os genes e dos OGMs
sobre a saúde e a biosfera. O trabalho de pesquisa, o verdadeiro,
na realidade, não se limita a desenrolar uma bola dourada, sob
o controle das multinacionais. A ciência deve manter-se em pé,
sem a restrição nem a obsessão de ser imediatamente rentável,
mantendo, tal como uma sentinela, o cuidado sobre o ecossistema
e sobre a humanidade.
8 Entrevista com Françoise Monier, em L’Express, 3 out. 2002.









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